segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Temporão fala sobre transição demográfica e sua ameaça à saúde brasileira



   Em entrevista à revista Carta Capital, José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, coordenador executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags) e pesquisador da ENSP, falou sobre o futuro da saúde no Brasil com base na transição demográfica pela qual o país passa: o aumento da expectativa de vida da população. De acordo com ele, "a população envelhece de maneira muito rápida. O que levou um século para acontecer na França demorou 50 anos para ocorrer no Brasil. Esse novo perfil demográfico vai exigir uma profunda mudança na organização do sistema de saúde", avalia. Confira, abaixo, a entrevista na íntegra.

Uma bomba-relógio ameaça a saúde brasileira. Até 2030, haverá mais cidadãos acima de 60 anos do que entre 18 e 49 anos. Com o envelhecimento da população, o número de portadores de doenças crônicas deve aumentar, com inevitável impacto nas contas do SUS. As despesas médicas da rede pública podem crescer até 149% nos próximos 20 anos. Esse quadro deve se agravar com a manutenção da atual tendência. O país passa por um processo de "americanização" de seu sistema de saúde, com a perda de controle dos gastos causada pela hiperespecialização médica, pela pressão da indústria para o custeio de tecnologias de eficácia duvidosa e a falta de regulamentação do mercado privado.

O sombrio diagnóstico é do sanitarista José Gomes Temporão, ex-ministro de Lula e coordenador executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), criado há dois anos pela Unasul. "Além de ampliar os recursos para a saúde pública, é preciso acabar com os subsídios do governo ao mercado, incluído o abatimento de despesas médicas do Imposto de Renda", propõe, em entrevista a Carta Capital. "Hoje, estima-se que a soma das isenções fiscais e dos gastos do governo com planos privados para funcionários públicos chegue a R$ 15 bilhões por ano. É muita coisa, diante do sufoco financeiro da rede pública."

Carta Capital: Durante a sua gestão, o Ministério da Saúde deu grande ênfase ao Programa Saúde da Família. Por quê?

José Gomes Temporão: Há um consenso entre os especialistas de que não é possível ter um sistema de saúde universal, equitativo e sustentável sem uma grande base de atenção primária. A classe média imagina que um sistema bom é aquele no qual ela pode escolher seus especialistas por conta própria. O cidadão sente uma palpitação e procura um cardiologista, sem antes passar por um clínico geral. Só que talvez o problema não seja cardíaco, então o paciente transita entre vários especialistas até acertar o diagnóstico, com um custo elevadíssimo para o sistema.

Carta Capital: A atenção primária evita o desperdício?

Temporão: Os clínicos gerais funcionam como uma espécie de filtro antes de o paciente ser encaminhado aos níveis mais especializados. No Brasil, é comum um paciente não saber qual é o seu médico. Pelo Programa Saúde da Família (PSF), cada equipe fica responsável por um conjunto de pessoas que passam a ser monitoradas pelo mesmo médico. Por acompanhá-los há muito tempo, o profissional não pede exames desnecessários, sabe se o paciente tem diabetes ou hipertensão, quando é necessário um especialista. O PSF cobre 55% da população. Mas, grosso modo, ainda está restrito aos pequenos e médios municípios.

Carta Capital: Alguma explicação para esse fenômeno?

Temporão: Primeiro, as faculdades não formam médicos preparados para essa visão. Há uma hiperespecialização precoce. No Canadá, as bolsas e vagas para residência médica são definidas pelo governo. Em 2012, a grande maioria das vagas disponíveis era para clínicos gerais. Em número bem menor, havia vagas para cardiologistas, neurologistas e outras especialidades. Há também uma visão ideológica, alimentada pelo lobby da indústria, de que o importante são as inovações tecnológicas, o aparelho mais moderno de ressonância magnética. Precisamos nos decidir. Vamos seguir o caminho trilhado pelo Canadá ou o modelo dos EUA, esse laissez-faire que leva à perda de controle dos gastos?

Carta Capital: Hoje, o SUS atende 75% da população. Mas o mercado de planos de saúde cobre 48 milhões de brasileiros. Esse modelo híbrido, público e privado, não ameaça a equidade?

Temporão: Esse é o ponto central da discussão: o risco de americanização do sistema de saúde brasileiro. A partir do mesmo momento que a Constituição garantiu a saúde como um direito de todos, os sucessivos governos negaram os recursos necessários para garanti-lo. Isso começa no início dos anos 1990, quando o então ministro da Previdência, Antônio Britto, retira a saúde da Seguridade Social e joga para o orçamento fiscal da União.

Carta Capital: A Constituição ampliou o acesso à saúde para todos. Mas os recursos da Previdência deixaram de financiar o setor.

Temporão: Sim, e os trabalhadores que antes contribuíam para o extinto Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) migraram para os planos privados. Aí vem o Adib Jatene na briga pela aprovação da CPMF. O ministro consegue aprovar o novo tributo, mas boa parte da arrecadação é desviada para outros setores. A regulamentação da Emenda 29 estabelece cotas de investimento em saúde para estados e municípios, mas a regra não vale para a União. O gasto porcentual do governo federal está em queda. Além disso, há uma série de iniciativas que sugam recursos do SUS, como a autorização para abater despesas com saúde privada no Imposto de Renda da classe média. Hoje, estima-se que a soma das isenções e dos gastos do governo com planos privados para funcionários públicos chega a R$ 15 bilhões por ano. É muita coisa, diante do sufoco da rede pública.

Carta Capital: Mas os planos de saúde não desafogam o SUS?

Temporão: É um processo idêntico ao que aconteceu com a escola pública. Amplia-se o acesso à educação, falta dinheiro, e a qualidade do ensino cai. A classe média foge para as escolas privadas, que são sustentadas com uma série de renúncias fiscais. O processo de fragilização do sistema público tem sido construído ao longo de décadas. Na Inglaterra, 85% do gasto em saúde é público, no Brasil, cerca de 60% é privado.

Carta Capital: E qual é a solução?

Temporão: Convém analisar os grandes números do orçamento fiscal da União. Do total da arrecadação, superior a R$ 1 trilhão no ano passado, 46% foram usados para honrar os compromissos da dívida interna. Depois, há as despesas fixas, como pagamento da máquina pública e os gastos da Previdência Social. Para a saúde, sobram apenas 4%. Precisamos de um novo imposto? Acho que não. Há recursos suficientes, só que é necessária uma mudança política de apropriação e distribuição dos recursos gerados pelos cidadãos.

Carta Capital: O senhor puxou essa discussão dentro do governo?

Temporão: Sim, mas há uma visão muito presente, sobretudo na área econômica do governo, de que a saúde já tem muito dinheiro, mas o sistema é ineficiente. Todos defendem o SUS no discurso, mas a burocracia estatal tem planos privados custeados pelos nossos impostos. E simbólico ver o presidente Lula, ao adoecer, procurar o melhor hospital particular do país, e não um da rede pública.

Carta Capital: O que pode ser feito?

Temporão: Além de ampliar os recursos para a saúde pública, é preciso acabar com os subsídios do governo ao mercado, incluído o abatimento de despesas médicas no Imposto de Renda. Hoje, se a dona Maria, moradora de Copacabana, acordar um dia, olhar para o espelho e achar que o seu busto precisa ser aumentado, ela faz uma cirurgia estética e abate 100% do valor devido no Imposto de Renda. Depois, vem o Congresso e aprova uma lei que obriga iniciar o tratamento do paciente com câncer em até 60 dias...

Carta Capital: Não é uma boa medida?

Temporão: É uma lei carregada de boas intenções. Mas o mesmo Parlamento que aprovou essa lei é aquele que nega ao SUS recursos para que ela seja cumprida. Para que todos os pacientes diagnosticados com câncer tenham o seu tratamento iniciado imediatamente, precisamos dobrar ou triplicar a capacidade instalada, o número de hospitais e centros de tratamento.

Carta Capital: Muitos pacientes tentam fazer valer seus direitos na Justiça, quando um tratamento de alto custo é negado pelo SUS.

Temporão: A questão é: esse tratamento é necessário? Hoje é muito comum o cidadão se consultar com o dr. Google. Ele acorda de manhã, entra na internet, descobre a sua doença e vai ao médico cobrar uma providência. Muitas vezes o que está manifestado nos processos judiciais é um desejo do paciente, e não uma necessidade. Trata-se de um desejo fabricado pelas campanhas de marketing, pelas reportagens que anunciam curas milagrosas, pela cultura moderna de ter acesso ao medicamento mais moderno, mesmo que a eficácia dele não tenha sido comprovada.

Carta Capital: O que fazer?

Temporão: A presidenta Dilma Rousseff sancionou uma lei importante, que cria a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec). A partir de agora, esse comitê determinará se uma tecnologia será incorporada ao SUS ou não. Antes disso, serão realizados estudos de custo-efetividade. É preciso ter uma estrutura de regulação, com critérios rígidos, para que essas tecnologias atendam todos, e não somente uma parcela da população.

Carta Capital: O Brasil está preparado para a transição demográfica pela qual estamos passando?

Temporão: Em 2030, vamos ter mais brasileiros acima de 60 anos do que entre 18 e 49 anos. A população envelhece de maneira muito rápida. O que levou um século para acontecer na França demorou 50 anos para ocorrer no Brasil. Hoje, os casais têm poucos filhos, as pessoas tendem a viver mais tempo. Aumentará o número de pessoas com doenças crônicas e os custos do sistema.

Carta Capital: Segundo o Instituto de Estudos sobre Saúde Suplementar (IESS), os custos do SUS aumentarão 149% até 2030.

Temporão: Esse novo perfil demográfico vai exigir uma profunda mudança na organização do sistema de saúde. A Organização Mundial da Saúde estima que, nos próximos 20 anos, demências senis, Alzheimer, depressão e distúrbios neuropsíquicos serão as doenças que mais vão impactar os sistemas de saúde. A assistência médica no Brasil ainda é muito focada no atendimento de casos agudos, urgência e emergência. Precisaremos nos reorganizar.

Carta Capital: E o Brasil ainda é um grande consumidor de tecnologia estrangeira, não?

Temporão: Sim, e felizmente o governo deu continuidade a um projeto iniciado na minha gestão, o fortalecimento do complexo industrial da saúde. Tivemos a ampliação do mercado de genéricos, as parcerias público-privadas para a internalização da produção de medicamentos e outras tecnologias. Nos próximos cinco anos, o Brasil vai incorporar 50 novos equipamentos de radioterapia. Tradicionalmente, seria feita uma licitação internacional. O país compra os equipamentos, instala e opera. Como está sendo feito? O Brasil chama a multinacional, mas exige a construção de uma planta em seu território, a transferência de tecnologia.

Carta Capital: As políticas de redistribuição de renda tiveram algum impacto na saúde?

Temporão: Veja o exemplo da redução da mortalidade infantil. É evidente que o PSF, o acesso ao pré-natal e o programa nacional de imunização tiveram um impacto significativo. Mas também a mudança no acesso à alimentação, a ampliação da rede de saneamento, o maior grau de escolaridade da mãe e o Bolsa Família. Uma vida mais saudável não depende só de um bom sistema de atenção médica. É preciso olhar para as causas das doenças. E muitas delas residem na distribuição da riqueza, no acesso à educação, ao saneamento, à segurança pública.

Carta Capital: Cerca de 50 mil brasileiros morrem anualmente por causas violentas, homicídios, sobretudo.

Temporão: O Brasil sofre o que chamamos de tríplice carga sobre a mortalidade. Morremos de moléstias do mundo desenvolvido, como problemas cardiovasculares e câncer. Mas ainda há muitas mortes causadas por doenças tropicais, como tuberculose, dengue, malária e hanseníase. A terceira carga é a violência: homicídios e agressões interpessoais. É preciso introduzir políticas públicas para famílias em situação de vulnerabilidade social, para garantir o pleno desenvolvimento da criança ao lado da mãe. É o que chamamos de cuidados com a primeira infância. Recentemente, a presidenta Dilma ampliou o programa Brasileirinhos e Brasileirinhas Saudáveis. Nasceu como uma coisa pequena em minha gestão e, agora, ganhou dimensão nacional. É um caminho virtuoso, pois a criança abandonada está mais vulnerável à violência.

Carta Capital: Como o senhor avalia o trabalho do seu sucessor no Ministério da Saúde?

Temporão: Percebo grande grau de continuidade, com as marcas do governo Lula, que foram a implantação do Samu, da Farmácia Popular, do Programa Saúde da Família, o fortalecimento do complexo industrial da saúde. Mas há novidades, a começar pela maior ênfase na gestão. Houve, por exemplo, a regulamentação de um dos artigos da lei do SUS que cria a possibilidade de contratos de gestão entre União, estados e municípios, para a implantação de redes integradas de atenção. Pela primeira vez, será possível fazer uma espécie de contratualização de metas e recursos entre os entes públicos. Padilha também conseguiu avançar na criação de um ranking para avaliar o desempenho de estados e municípios.

Carta Capital: No que consiste o seu trabalho na Unasul?

Temporão: A Unasul surgiu em 2009, com o objetivo de promover a integração dos países da América do Sul na área econômica, de defesa, comunicações, transporte. E, desde o início, a saúde colocou-se de maneira muito forte. Aprovamos um plano com cinco prioridades: determinantes sociais da saúde, sistemas universais, vigilância sanitária e epidemiológica, acesso a medicamentos e formação de recursos humanos. A proposta é colocar à disposição dos governos as melhores evidências para resolver problemas práticos, formar quadros, coordenar estudos e pesquisas.

Carta Capital: Algum resultado prático?

Temporão: Em 2011, durante a Conferência Internacional sobre Determinantes Sociais na Saúde, a Unasul apresentou uma posição conjunta diante de 160 países. Houve também o caso de uma carga para a produção de genérico no Brasil que foi retida em um porto na Holanda ilegalmente, sob a desculpa de que era produto falsificado. A Unasul apresentou uma queixa na Organização Mundial do Comércio. Há muitos projetos em andamento, como o esforço para estruturar organismos de vigilância sanitária na América do Sul. O Brasil está avançado e pretende ajudar os seus vizinhos com a experiência da Anvisa.

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