quarta-feira, 18 de abril de 2012

Bíblia da psiquiatria é reescrita



                                                      Pesquisador comenta reavaliação do manual de transtornos mentais

A versão on-line do Jornal do Commercio de Pernambuco publicou reportagem nessa segunda-feira (16/4) sobre a revisão do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria. O pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/ENSP), Paulo Amarante, comentou a reavaliação do manual.

Manual que orienta a conduta a ser seguida por especialistas em todo o mundo é reavaliado, permitindo novos diagnósticos para problemas como o luto e a dependência da internet

Asseguram os estudiosos que os transtornos mentais despertam curiosidade desde a pré-história, quando escavações arqueológicas revelaram a existência de crânios perfurados cirurgicamente. A complexidade desses distúrbios é tão grande que conceitos adotados há pouco mais de uma década já passam a ser revistos.

A depressão, que lidera entre as causas de afastamento do trabalho relacionadas ao adoecimento mental, está no rol da atualização da bíblia que é referência mundial para diagnóstico e tratamento dos distúrbios mentais.

Trata-se do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês), que passa por atualizações desde 1952. Está hoje na 4ª versão: o DSM-IV, lançado em 1994 e revisado em 2000.

E a próxima edição (DSM-V), que deve ser publicada em maio do próximo ano, está disponível para consulta pública em site oficial: www.dsm5.org. Entre os pontos que mais geram debates e dúvidas durante a construção dessa enciclopédia que prenuncia os rumos da psiquiatria, está a inserção de novas classificações de diagnóstico.

Para o novo manual, os especialistas desejam considerar que o luto, por exemplo, deixa a pessoa passível de tratamento medicamentoso caso apresente um estado depressivo que perturbe a produtividade e a vida em sociedade.

Atualmente, o tratado de quase 900 páginas alega que as reações de luto normais podem se estender até por um ou dois anos, devendo ser diferenciadas dos quadros depressivos propriamente ditos. Na primeira condição, a pessoa usualmente preserva certos interesses e reage positivamente ao ambiente, quando devidamente estimulada.

"Para a atualização que está em curso, considera-se que a pessoa geralmente pode vivenciar um luto sem depressão, mas eventualmente pode estar num luto e também deprimida", diz o psiquiatra Amaury Cantilino, professor do departamento de neuropsiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Intriga Amaury o fato de atualmente não ser oficialmente permitido o diagnóstico de depressão na circunstância de dor pela morte de alguém.

"O luto é uma reação psicológica normal decorrente de uma perda. Mas essa condição pode ser eventualmente um fator estressor o suficiente para provocar o aparecimento de um episódio depressivo", explica o médico. Ele ainda deixa claro que, enquanto a maioria das pessoas que perde um ente querido tem só uma reação de luto sem necessidade de tratamento, outras terão luto associado à depressão. "Em casos como esse, o DSM-V não nos impede de dar diagnóstico e sugerir tratamento quando estes forem válidos".

Certamente, segundo alguns críticos que não veem com bons olhos mais uma atualização da bíblia da saúde mental, a criação de critérios para novos diagnósticos pode trazer à tona uma questionável epidemia de distúrbios psiquiátricos. Além da polêmica em relação ao luto, existem também controvérsias diante da possível inserção de distúrbios que atualmente não estão no DSM-IV.

É o caso da relação de dependência com a internet, que passa a ser considerada por uma leva de pesquisadores como um transtorno que deve estar no próximo manual. Esse novo critério é considerado porque o uso patológico da Web pode criar situações de irritação, tensão e depressão quando a pessoa com o problema fica impossibilitada de se conectar.

A possível entrada da dependência com a internet e de outros distúrbios no megadicionário da psiquiatria assusta uma parte de estudiosos, como Fernando Freitas e Paulo Amarante – ambos pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz (Laps/Fiocruz).

Em março, eles publicaram artigo que explica por que o DSM-V vem reforçar a tendência à medicalização dos comportamentos humanos da atualidade, ao transformá-los em patológicos em mínimos detalhes. "Para se ter uma ideia da chamada inflação dos distúrbios considerados objetos da psiquiatria, podemos dizer que eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico há 50 anos. São mais de 300 atualmente".

Eles ainda frisam que a quinta edição do manual gera controvérsias. "Basta uma consulta na internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV." De fato, experts que participaram da elaboração da quarta versão do guia aparecem na Web com opiniões divergentes do esboço da nova publicação.

O psiquiatra americano Allen Frances, por exemplo, que coordenou a força-tarefa do DSM-IV, de 1994, é um dos que acreditam que novos distúrbios propostos são desnecessários. Mas ele mesmo, quando criou os critérios na década de noventa, também foi questionado pelo aumento de diagnóstico do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) – polêmica que rende até hoje.

"É preciso considerar que se passou mais de uma década entre a última revisão do manual, em 2000, até os dias atuais. Nesse meio tempo houve muitas produções científicas, com várias visões sobre os distúrbios mentais", diz o psiquiatra Antonio Peregrino, professor da Universidade de Pernambuco (FCM/UPE). Nesse raciocínio, ele concorda com a inserção de novos critérios de diagnóstico.

"Vale ponderar também que o novo DSM está sendo produzido com responsabilidade. Os especialistas envolvidos estão estudando profundamente cada caso", avisa o médico. Ele considera que, usadas com responsabilidade, as novas classificações podem ser úteis para direcionar tratamentos.

E cita como exemplo a depressão. "É um transtorno que pode aparecer de maneiras diferentes em várias fases da vida. E cada uma dessas etapas requerem diagnósticos específicos e condutas terapêuticas singulares. Isso precisa ser considerado na atualização do manual", ressalta Peregrino.

Em relação à infância, os transtornos globais do desenvolvimento, como o espectro autista (inclui vários distúrbios da família do autismo em graus variados), são os que deixam o debate mais caloroso. "Pacientes com autismo de alto funcionamento, cuja inteligência se encontra dentro da média da população ou mesmo acima, poderão não preencher os critérios para transtorno do espectro autista, segundo o DSM-V", alega o psiquiatra José Marcelino Bandim, do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip).

Ele diz que o mais preocupante é que mesmo as crianças com autismo de alto funcionamento tendem a apresentar prejuízos sociais e acadêmicos importantes, o que compromete a qualidade de vida. "Então, se isso não for considerado durante a construção do novo manual, vamos nos deparar com o risco de os pacientes e a família ficarem totalmente desamparados", alerta o psiquiatra.

Discussões com esse teor vão rolar por muito tempo ainda. Mesmo diante de polêmicas, uma coisa é certa: o paciente que adoece mentalmente não pode ficar desamparado, tampouco estigmatizado. O lado bom de toda essa história é que, ao acompanhar os debates, a sociedade passa a ter um senso crítico apurado sobre os transtornos psiquiátricos. E quanto mais a gente sabe sobre saúde mental, menores são as nossas falsas percepções sobre o assunto.
Fonte(s): Jornal do Comercio de Pernambuco

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