terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Marcações Para o Mesmo Dia: Quebrando o Paradigma do Acesso


Para assumir o controle de sua agenda, você deve fazer o impensável: Oferecer a todo paciente uma consulta para o mesmo dia.



Mark Murray, Médico de Família, e Catherine Tantau, BSN, Médica de Família



Publicado em Family Practice Management / September 2000. Traduzido por Leonardo Graever, MFC, Ri de Janeiro, Brasil.



Numa era não muito distante, longas esperas e atrasos na fila do consultório eram comumente vistas como uma espécie de símbolo de status. Um médico com uma longa lista de espera para consultas ou grande demora nos atendimentos era tido como ótimo, por ter tamanha demanda. Mesmo quando surgiam reclamações de pacientes, muitos grupos relutavam em abordar o problema, por haver tal conceito acompanhando o status quo.

Nessa época, no início dos anos noventa, estávamos gerenciando um grande departamento de Atenção Primária do Kaiser Permanente, no norte da Califórnia. Tínhamos cerca de 250.000 pacientes adultos em cuidados primários, mais de 100 médicos e 400 outros funcionários. O que havia em comum entre todos era que ninguém estava satisfeito, sendo boa parte do descontentamento centrado na questão da longa lista de espera e demora, gerando “funis” no nosso sistema. A média de espera para atendimentos era de 55 dias, e quando nossos pacientes tinham sorte o suficiente de ser atendidos, a probabilidade de o serem pelo seu próprio médico era menor que 47%.

O sistema, além de ser ineficiente e frustrante, era também dispendioso. Por exemplo, nossa enorme lista de consultas marcadas quase nos convencia de que precisávamos contratar mais médicos e outros funcionários, o que não era verdade. Longas filas de espera para marcação geravam uma grande taxa de ausência nas consultas, significando perda de lucro e de oportunidades. Recursos humanos que deveriam ser canalizados para o cuidado ao paciente eram desperdiçados em triagem, atendimento telefônico e gerenciamento de nossas longas listas. Além disso, quanto mais o cuidado era adiado, maior a ameaça à qualidade do mesmo.

Como em muitos serviços, nós tentamos ajustar o sistema à exaustão. Desenvolvemos novos tipos de marcação; centralizamos os telefones; descentralizamos os telefones; alteramos o setor de recepção; criamos programas de busca; “chicoteamos” nossos médicos e funcionários para aumentarem a produção. Obviamente, nada funcionou. Houve momentos de alívio, mas não alcançamos as melhorias necessárias ao sucesso. O que finalmente percebemos foi que não adiantava mais tentar ajustar o sistema. Teríamos que reconstruí-lo.

Nossa reconstrução envolvia criar um sistema de acesso focado no ponto principal cuidado à saúde: a relação médico-paciente. Para funcionar, o sistema de acesso deveria incluir dois itens cruciais:



1. Continuidade, ou seja, a habilidade do sistema de proporcionar, aos pacientes, atendimento pelo seu próprio médico. Coisas boas acontecem quando o mesmo médico vê o paciente. Por exemplo, um relatório não publicado do Kaiser mostra consistentemente que pacientes em todos os grupos demográficos ficam sempre mais satisfeitos quando suas consultas são marcadas sempre para o mesmo médico, e não para diferentes profissionais.

2 .Capacidade, ou seja, espaço na agenda do dia. Normalmente, quando o médico chega ao consultório, sua agenda está sempre completamente cheia, ou há espaço para atender as demandas por cuidado provenientes da população naquele mesmo dia?

O modelo que criamos é comumente chamado de “Acesso Aberto”, “Acesso Avançado” ou “Agenda Diária”. Nele há uma simples e desafiadora regra: “Faça o trabalho de hoje, hoje.”. Tal prática permite ao paciente ser visto pelo seu médico no dia em que o procura, por um determinado problema, seja este urgente, de rotina ou mesmo prevenção. Em menos de um ano, reduziu-se nossa espera de 55 dias para apenas um dia, aumentando dramaticamente a chance de o paciente ser visto, e melhorando a satisfação deste, do médico e dos demais funcionários. Estamos inclusive reunindo evidências de que esse modelo melhore a evolução clínica dos pacientes. (Veja o quadro “Histórias de Sucesso”).

Quando embarcamos nesse modelo de “Acesso Aberto”, acreditávamos que o mesmo funcionaria apenas no serviço de convênios. Mas à medida que trabalhamos com organizações de saúde nos Estados Unidos, Canadá e Europa, testando e refinando estes princípios, descobrimos que o Acesso Avançado funciona com igual qualidade, senão melhor, em serviços privados. O modelo tem ampla aplicação e é bastante promissor para a prática médica em todos os tipos e formatos.

Três opções



Todo sistema é projetado para absorver os resultados que produz. Essa é uma premissa chave do movimento de melhora da qualidade, que se baseia amplamente no trabalho de W. Edwards Deming. Significa que, por exemplo, se há uma demora de seis semanas para a marcação de consultas, é porque o sistema foi projetado para tal. Por outro lado, se queremos mudar o resultado, temos que mudar o sistema_ destruir o paradigma e olhar para os fatos de uma maneira diferente.

Há essencialmente três tipos de sistemas relacionados à questão do acesso:



Num modelo tradicional, a cada manhã o médico chega ao consultório e sua agenda está cheia. Não apenas cheia, está saturada, e cada paciente marcou sua consulta, por exemplo, há duas semanas, um ou dois meses atrás etc. Agendamentos de rotina preenchem a agenda, e casos urgentes são espremidos entre as consultas, levando o médico a deixar de almoçar, trabalhar até mais tarde ou correr atrás do atraso. Em outras palavras, o meio pelo qual o sistema aumenta sua capacidade de funcionamento é empilhando consultas em cima de uma agenda já cheia. Numa vã tentativa de controlar a demanda, cria-se uma série de restrições e classificações complexas de atendimento (saúde do homem, saúde da mulher, retorno de diabéticos, consultas de retorno). Tais sistemas têm tipicamente uma alta taxa de absenteísmo. Além disso, como lotam as agendas, estes sistemas geram uma abundância de consultas de urgência, com custo mais alto e quebra na relação médico-paciente. O mote destes sistemas é: “Faça o trabalho do último mês hoje”.

Há cerca de seis anos, tais problemas chamaram a atenção de pesquisadores, que chegaram à conclusão que a demanda é na realidade um tanto quanto previsível. Alguns pesquisadores, incluindo Marvin Smoller, concluíram que, num grupo de 10.000 pacientes, a demanda por consultas de urgência giraria em torno de 55 numa segunda, 50 numa terça e 45 de quarta a sexta-feira _ ao menos nesta situação particular.

Munidos dessa informação, muitos serviços mudaram seu sistema para um “Sistema com Vagas”. A cada segunda-feira, então, eram destinadas 14 vagas para atendimentos de demandas urgentes para cada um dos 14 médicos. O resto das vagas era agendado com antecedência, como no modelo tradicional. O mote desse sistema é “Faça uma parte do trabalho de hoje, hoje”.

Embora tal modelo traga uma melhoria em relação ao modelo de agenda saturada, são encontrados nele ainda vários problemas:



- Primeiro, o modelo na verdade tem pouca capacidade, pois consultas são marcadas ou demandas urgentes são atendidas. Pacientes requerendo acesso por demandas não-urgentes continuam tendo suas necessidades adiadas, então o trabalho na verdade continua sendo postergado.



- Segundo, acaba sendo criado nesse sistema um terceiro tipo de agendamento, o do paciente que não tem uma demanda urgente, mas que não pode esperar até o próximo dia disponível. Isso complica o sistema e eventualmente estende o tempo de espera.



- Terceiro, há sempre tensão entre os pacientes marcados e os atendidos com urgência. Quantas urgências deve um serviço encaixar nesse modelo específico? Quarenta e cinco ou cinqüenta e cinco numa segunda-feira, por exemplo? Precisão é importante porque se essas vagas forem reservadas e não utilizadas, haverá espaços perdidos na agenda.



- Quarto, os funcionários de suporte que utilizam esses sistemas têm tendência de orientar os pacientes a entrar em contato novamente apenas no dia em que quiserem ser atendidos. Tal prática sabota qualquer tentativa de predizer a demanda, congestiona o sistema telefônico e cria um futuro problema de agenda.



- Finalmente, há o que se chama de “economia de subsolo”: a pressão de desviar vagas futuras para pacientes que não se encaixam em critérios de atendimento urgente, levando ao retorno do padrão de agendas saturadas.



O terceiro tipo de sistema de acesso, “Acesso Avançado”, é o mais simples, porém requer uma mudança de paradigma. Para funcionar, médicos têm que mudar o que sempre tiveram em mente como adequado. Na atenção à saúde, é “geneticamente codificado” no profissional que “se você está realmente passando mal, você deve ser atendido agora. Caso contrário, pode esperar”. O Acesso Avançado elimina a distinção entre urgência e rotina e demanda que os sistemas “façam o trabalho de hoje, hoje”. Esse é o mote.



Numa segunda-feira, então, quando o médico começa seu dia, aproximadamente 65 a 75% de suas vagas de atendimento estão abertas. As vagas agendadas são de pacientes que não puderam vir na sexta-feira, entraram em contato por telefone e foram orientadas a vir na segunda. Quando pacientes ligam demandando consultas, é oferecido atendimento para o mesmo dia, independente do motivo. A primeira pergunta que o funcionário faz não é “qual é o seu problema?”, mas “quem é o seu médico”. Ao final da segunda-feira, o trabalho de segunda está feito, e a terça está aberta, e assim em diante.

Como pensado e verificado, a demanda não é insaciável, como em muitos serviços se acredita. Mesmo em serviços com demanda intensa, esta é geralmente igual ao número de pacientes sendo efetivamente vistos no dia. Quando os médicos percebem que a demanda e a oferta estão em equilíbrio, percebem que é possível “fazer o trabalho de hoje, hoje”.



Quando os serviços adotam este sistema, alguns fatos mágicos acontecem:



- Primeiro, o tempo de espera para atendimento é um dia. Não há como superar isso.



- Segundo, não há mais necessidade de reservar vagas de atendimentos para o mesmo dia, pois todos o são. A disponibilidade na agenda é maximizada e ganha uma capacidade que não tinha antes.



- Terceiro, a probabilidade de o paciente ver seu próprio médico aumenta, o que gera maior eficiência, maior sensação de controle para os médicos e satisfação para todos.



Como chegar lá?



O Acesso Avançado é uma ruptura radical da maneira pela qual a maioria dos médicos pratica medicina. Para a maioria dos casos, não é uma prática que possa ser implantada em pouquíssimo tempo, mas é factível em alguns meses de trabalho duro. A melhor estratégia é identificar uma equipe de teste formada por profissionais que tentaram outras formas de controle sem sucesso, que tenham senso de aventura, tenham sido bem sucedidos em outros projetos de melhoria de qualidade ou estão tão desesperados a ponto de querer tentar qualquer saída. Se o serviço é de composto por várias Unidades, pode-se tentar a implantação em uma delas. Se for um serviço menor, sua equipe pode ser composta por um médico e os funcionários que trabalham com este. A qualquer momento, identifique quem vai liderar essa iniciativa e comece a trabalhar os obstáculos, que serão únicos nesse grupo.

O processo de mudança do acesso envolve cinco mudanças-chave:



1 – Comprometer-se com o ganho de capacidade da agenda.



No sistema tradicional, se ganha capacidade empilhando o trabalho em cima de uma agenda já saturada. Num modelo de encaixe, se ganha capacidade reservando-se antecipadamente espaço na agenda para demandas urgentes. No modelo de Acesso Avançado, isso é feito realizando-se todo o trabalho do dia no mesmo dia, o que cria máxima capacidade para o dia seguinte.



2 – Reduzir a demanda de agendamentos existente.



Reduzir a demanda de agendamentos é indubitavelmente trabalho duro, e provavelmente vai envolver atender mais pacientes por dia durante seis a oito semanas. Uma data limite pode ser marcada no calendário e acordado pelo grupo que não haja marcações além desta.

Adicionalmente, os médicos podem ajudar a reduzir a demanda pré-existente maximizando seu tempo com cada paciente, verificando se o paciente tem marcações para um futuro próximo e perguntando: “Posso ajudá-lo em mais algum problema?”, a fim de tentar eliminar a demanda futura. Por exemplo, Ao atender a Sra. Jones, por uma inflamação de garganta, o médico pode perguntar: “Eu vejo que você tem uma consulta de retorno de hipertensão. Podemos cuidar disso agora?”

Outra estratégia é rever a freqüência com que os médicos marcam o retorno de seus pacientes. Esses intervalos são freqüentemente baseados em hábitos pessoais ao invés de indicação clínica. Se os médicos começarem a questionar essa freqüência, provavelmente vão ganhar capacidade em suas agendas.

Deve-se lembrar que há a boa e a má marcação. Boa marcação envolve dois tipos de pacientes:

1) Aqueles que não querem ser atendidos no mesmo dia (não mais que 25% dos pacientes, em nossa experiência);

2) Aqueles escolhidos pelo médico para serem revistos em determinada data, com base em necessidades clínicas. Má marcação, por outro lado, são todos os pacientes que têm seu atendimento adiado por questões inerentes ao sistema de saúde.



3 - Utilizar poucos tipos de agendamento.



Sistemas de agendamento funcionam mais adequadamente quando são despidos de complexidade e sistemas de regras, que levam apenas a erro e confusão. Os tipos de consultas no Acesso Avançado são reduzidos a três: P (pessoal: seu paciente sendo visto por você), T (equipe: seu paciente sendo visto por outro membro da equipe na sua ausência) e U (não-estabelecido: pacientes que ainda não estão associados a nenhum profissional). A duração das consultas também é padronizada em 15 a 20 minutos, ou baseada no tempo médio de consulta do médico, estendido apenas quando necessária, como em caso de procedimentos mais demorados, por exemplo. Enquanto a duração das consultas certamente varia por variados motivos, o diálogo entre médico e paciente geralmente pode ser realizado em 15 a 20 minutos.



4 – Desenvoler planos de contingência.



Como a demanda não é totalmente previsível e eventualmente vai haver sobrecarga, os grupos devem desenvolver planos de contingência. Quando um serviço decide fazer todo o trabalho do dia no mesmo dia, a primeira contingência é definir “dia”. Para a maioria dos serviços, “dia” é definido como o período de 8 da manhã até o início da tarde. O padrão da demanda é aumentar rapidamente durante a manhã, estabilizar em torno de 10 da manhã, cair na hora do almoço e permanecer em queda até o fim da tarde. A demanda por marcações após 16 h constitui aproximadamente 4% da demanda total do dia. (note-se que quando o médico atende pacientes ao final da tarde e durante a noite, muito comumente a demanda foi criada pela falta de tempo disponível na agenda para o atendimento durante o dia).

Planos de Contingência devem também levar em consideração quem mais na equipe pode ajudar o médico durante momentos de demanda excessiva ou quando o mesmo tiver que se ausentar inesperadamente. Por exemplo, pode o enfermeiro manejar alguma situação pertinente à demanda? Existe algum profissional de nível médio que possa ajudar? Ou algum colega médico, sem perder de foco a necessidade da continuidade da relação médico-paciente no cuidado? Há disponibilidade imediata de consultórios para atendimento? A equipe também deve planejar com antecedência como vão manejar aumentos previsíveis na demanda. Por exemplo, um serviço pode conduzir uma campanha de vacinação para a gripe fora do período de epidemia para reduzir a demanda em períodos epidêmicos.

5 – Reduzir a demanda por consultas desnecessárias

Realizar uma “limpeza” no sistema de agendamento de um serviço envolve eliminar consultas de pouco valor clínico. Mesmo em um serviço privado, isso faz sentido. Como mencionado anteriormente, uma maneira de reduzir a demanda futura é maximizar a eficiência da consulta atual. Geralmente isso requer uma consulta mais completa, o que gera mais satisfação no paciente e pode permitir, através do ganho de capacidade na agenda, a realização de procedimentos que tragam mais receita ao serviço.

Obviamente existem ainda outras maneiras de reduzir o volume da agenda: desenvolver o uso do telefone e do email de maneira mais eficiente; realizar atendimento em grupos; usar protocolos para o atendimento de pacientes com doenças crônicas; e criar um sistema de aconselhamento por telefone que seja visto como um serviço de ajuda, e não como uma barreira. Mais importante, talvez, ter consciência de que o certo esta sendo feito, da maneira certa, pela primeira vez, o que é mais provável de acontecer quando o paciente entra em contato com seu próprio médico.



Definindo limites apropriados



A capacidade de um serviço de realizar o Acesso Avançado e de ter médicos em número suficiente para isso é diretamente dependente do número de usuários cobertos pelo serviço. Se a população for de 500 pessoas, pode-se fazer qualquer coisa. Se for de 5000, eles irão continuamente decepcionar seus pacientes. O tamanho da população adequada para um médico dependerá de inúmeros fatores: a carga horária do médico, o risco de doença da população e o escopo da prática do médico. Cada ambiente é diferente, mas o tamanho adequado da população para um médico de família trabalhando em tempo integral em um sistema já amadurecido gira em torno de 2500 pessoas.

Para o sistema de Acesso Avançado ser bem sucedido, também é necessário preservar a relação médico-paciente e a individualidade da agenda do médico. É comum que médicos que consigam se adaptar ao sistema e ganhem capacidade em suas agendas comecem a receber a demanda não resolvida de seus colegas. Isso gera incentivos negativos. Ao contrário, os grupos devem desenvolver meios de colocar limites entre a prática dos diferentes profissionais. Médicos podem ajudar na demanda de outros profissionais em momentos de extrema demanda ou ausência, mas a regra geral deve ser do mesmo atender exclusivamente seus pacientes.

Quando os médicos atendem seus próprios pacientes e atendem sua demanda totalmente no mesmo dia, um sentimento de ordem e controle é restaurado na sua prática. Percebemos, quase universalmente, que quando o profissional organiza seu acesso e o faz de modo mais coerente, a ansiedade do paciente diminui, a consulta se torna mais rica e o médico descobre que a sua capacidade de resolução é muito maior do que ele poderia imaginar. Isso cria a oportunidade de dedicar mais tempo ao gerenciamento de sua prática, à educação em saúde, ensino ou mesmo ao aumento de sua produção, não num período de meses, mas hoje.

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